Especialistas e religiosos discutem a legalização do aborto no Senado Federal

Por Paula Guimarães.

Pela quarta vez, o aborto foi tema de audiência pública interativa na Comissão de Direitos Humanos (CDH), no Senado Federal. A audiência, realizada na última quinta-feira, 24 de setembro, busca subsídios para a Sugestão Legislativa (SUG) nº 15, de 2014, que propõe a regulamentação da interrupção voluntária da gravidez, pelo Sistema Único de Saúde (SUS), até a 12ª semana. A matéria, que chegou à comissão com mais de 20 mil assinaturas, precisa da aprovação desta para tramitar como projeto de lei.

A série de debates foi requerida por Paulo Paim (PT-RS), que preside a CDH, e por Magno Malta (PR-ES), relator da sugestão. Malta que não pôde comparecer a audiência é autor da PEC 29/2015 que altera o artigo 5º da Constituição, garantindo a inviolabilidade do direito à vida “desde a concepção”. A mobilização em defesa da SUG é feita pela Frente Nacional pela Legalização do Aborto que integra redes e entidades voltadas aos direitos humanos das mulheres. Três expositores e um convidado de cada lado expuseram seus argumentos e depois a fala foi aberta ao público inscrito.

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Ativistas da Frente Nacional Pela Legalização do Aborto

“As mulheres vítimas do aborto clandestino não estão sentadas aqui. Se fossem nossas filhas, ou de deputados e senadores, o aborto já teria sido legalizado. No Brasil, a prática não é crime para uma parcela da população que tem procedimento seguro nos hospitais”, concluiu sua fala, sob fortes aplausos, Olímpio Barbosa Moraes Filho, vice-presidente da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).

O médico afirmou que há um ponto de convergência entre os dois lados: ninguém é a favor do aborto. A diferença estaria em como enfrentar o problema. “Criminalizar a mulher ou tratar como questão de direitos humanos e de saúde pública, conforme a Organização Mundial de Saúde (OMS), a Febrasgo e a ciência?”, questionou.

Olímpio é diretor do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), segunda maior maternidade de Pernambuco, que desde 2006 é referência no atendimento a mulheres em casos de aborto legal. Segundo ele, mesmo quando o médico recorre à objeção de consciência, este deve, em sua função bioética, acolher a mulher e encaminhá-la ao atendimento. “Imagine se um católico precisa de transfusão de sangue e é atendido por um médico testemunha de Jeová. Seria ético deixar o paciente morrer?”, refletiu.

Em resposta ao palestrante anterior, que pautou sua defesa nos efeitos negativos do aborto para a mulher, o médico explicou que a prática tem consequências negativas somente quando realizado de forma clandestina. “Segundo psicólogos, o maior dano à mulher é tirar o seu poder de decidir”, destacou.

Lembrou que a maioria dos países desenvolvidos não penaliza as mulheres que abortam. Conforme ele, quando é tratado como problema de saúde pública o aborto aparece e o Estado começa a investir para que não aconteça. Na clandestinidade, as mulheres “resolvem na favela” e, segundo pesquisas, após cinco anos repetem a prática. “Será que há um conluio dos cientistas e pesquisadores do mundo todo, da OMS que congrega 189 países de diferentes religiões? Será que todos os países desenvolvidos estão errados e quem está certo somos nós em tratar a questão dessa maneira?” questionou.

O médico falou ainda sobre a hipocrisia social em relação à cultura do estupro, acobertada principalmente nas regiões mais pobres do país. Segundo ele, em Caruaru, uma jovem chamada Severina foi estuprada durante quatorze anos pelo pai, engravidou seis vezes, teve três filhos e sofreu três abortos espontâneos. “Todos sabiam, os médicos, a igreja e a polícia. O pai tentou violentar a filha e Severina o matou e se entregou à polícia. O Estado foi considerado culpado e paga indenização a ela”, relatou.

Ele enfatizou que a defesa do aborto pela comunidade médica não se dá por interesses financeiros, haja vista que profissionais lucram mais com a clandestinidade. “Quando o SUS começar a fazer, eles vão perder a fonte de renda. Um dos médicos mais ricos de Pernambuco que tem um haras, inclusive muito católico, faz abortos e toda sociedade sabe. Ele atende amantes dos políticos e à população que tem dinheiro. Se atendesse pobres, estaria preso”, revelou.

Caso da Nicaraguá: criminalização como fetiche
A convidada Maria Teresa Blandón, ativista Nicaraguense, falou sobre a difícil situação em que vivem as mulheres do seu país devido à criminalização absoluta do aborto, não permitido nem mesmo em caso de estupro ou risco de morte. É o país com a maior taxa de gravidez na adolescência da América Latina e tem também uma alta taxa de mortalidade materna: 30 mil mulheres morreram nos últimos três anos por não terem acesso ao aborto terapêutico. Até 2006, a lei permitia o aborto desde que três médicos concordassem que era necessário interromper a gravidez.

Para ela, a ilegalidade do aborto é um instrumento de morte. “A Nicaraguá constitui um claro exemplo de como o Estado pode invocar a proteção da vida como um fetiche e provocar com leis injustas a morte de milhares de mulheres que são obrigadas a viver em condições de pobreza discriminação e violência. Frente a uma gravidez indesejada, é sempre terapêutico interrompê-la para que mulheres gozem de um estado de saúde integral”, afirmou.

Padre acusa ONU de estimular a prática sexual entre crianças
Pedro Stepien, diretor Nacional do Pró-Vida, denunciou o que chamou de estratégia da Organização das Nações Unidas (ONU) para minar a fé católica e implantar a prática do aborto em todo o mundo. Segundo ele, por trás das intenções da ONU na defesa direitos reprodutivos na América Latina está a promoção do aborto e do uso de contraceptivos. Explicou que o objetivo da organização é estimular a prática sexual entre crianças e adolescentes para vender preservativos que falham e assim oferecer pílula do dia seguinte e aborto. “É um negócio completo. O aborto produz restos humanos que servem para experimentação, extração de substâncias para uso em cremes e xampus”, afirma ele.

E continuou para comprovar sua tese de que o feto tem vida mais importante do que a da mulher. “Não é preciso ser estudioso para saber que a vida começa na fecundação. Vou dar dois exemplos: óvulo fecundado de um casal branco implantado no útero de uma mulher negra vai nascer uma criança branca. Óvulo fecundado de um casal negro implantado no útero de uma mulher branca vai nascer uma criança negra”, detalhou.

Para o católico, de origem polonesa, o governo federal tem uma mentalidade nazista ao adotar “políticas anti-vida e anti-família”, como medidas de acolhimento às mulheres que recorreram ao aborto clandestino. Segundo ele, por trás dessas ações estão os interesses da Fundação Rockefeller e suas associadas. “Eu, estrangeiro, vim de longe para defender a nação de vocês, tão bela e tão pacífica”, finalizou.

Estatuto do Nascituro seria Estatuto da Mulher Gestante
O convidado Nazareno Vasconcelos Feitosa, do Movimento Brasil Movida, iniciou seu discurso afirmando ser feminista e ironizou: “feminista, mas não abortista, como muitas feministas não são”. Seguiu citando inúmeras “conseqüências negativas” de um aborto voluntário para a saúde da mulher.

Na opinião dele, o projeto do Estatuto do Nascituro, que criminaliza até mesmo os abortos considerados legais, deveria ser chamado “Estatuto da Mulher Gestante”, porque asseguraria maior assistência e apoio à mulher. O líder afirmou a maioria das mulheres abortam porque são forçadas pelo marido e família. “O governo acolhe os refugiados, isso é belíssimo. Mas não acolhe suas crianças e mães”, ironizou mais uma vez.

Segundo Nazareno, o direito à vida é mais importante do que a autonomia da vontade e, nesse caso, o direito de escolha da gestante seria comparável ao direito do assassino. “Um ovo de crocodilo tem proteção à vida, mas o embrião de ser humano não. É um paradoxo”, afirmou ele.

O direito inviolável à vida desde a concepção
Stela Barbas, professora de direito da Universidade de Portugal, recorreu ao direito inviolável à vida, consagrado em constituições e tratados internacionais, para pautar sua argumentação contrária à SUG. Ela lembrou que o direito à vida além de fundamental é cláusula pétrea, está no artigo 5 da Constituição Brasileira e, sendo assim, não pode ser suprimido, nem por emenda constitucional.

Segundo Stela, o Brasil é signatário da Convenção Americana dos Direitos Humanos, no chamado Pacto São José da Costa Rica, que em seu artigo 4 diz “toda a pessoa tem direito de que se respeite sua vida protegido pela lei, desde o momento da concepção, ninguém pode ser privado à vida arbitrariamente”. “O direito à vida é indisponível e não transmissível a outro. Não existe direito sobre a vida, mas sim, à vida”, pontuou.

Conforme a jurista, em Portugal, a personalidade jurídica só é possível após o nascimento completo (como também consagra a Constituição Brasileira). “Estamos falando da interrupção do que ou de quem? Da vida de um de ser humano. Essa coisa se transformaria em ser humano”, enfatizou.

Para a jurista, a legalização do aborto caminha rumo a uma nova edição da eugenia, que no passado justificava o infanticídio na busca por crianças perfeitas e, que, ainda hoje acontece em relação às mulheres.  “A sociedade deixa de ser sujeito para passar a ser objeto, coisa que se compra, vende, troca, manipula e descarta”, afirmou.

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Maternidade deve ser resultado de escolha
Maria José Rosado Nunes, coordenadora da Católicas pelo Direito de Decidir, afirmou que a maternidade não pode ser vista de forma isolada do processo reprodutivo, posto que é uma entre tantas opções de realizações das mulheres. Explicou que ato humano é resultado do desejo e da reflexão e não só da capacidade biológica, que o iguala a animais reprodutores. “As mulheres não podem ser consideradas unicamente pela capacidade de colocar novos seres na comunidade humana. A maternidade deve ser resultado da opção e escolha”, declarou.

A ativista lembrou ainda que a maioria das mulheres que abortam já são mães e que além delas existem outras, cujo projeto de vida não inclui a maternidade, contudo todas teriam pleno direito de interrompê-la. “Apoiar a legislação sobre aborto não é banalizar a vida. A vida não existe na abstração das afirmações retóricas, o que existe é a vida de pessoas concretas. Estamos falando de mulheres que tem nomes, nossas vizinhas, alunas, sobrinhas, filhas, namoradas, dignas de apoio e compreensão, cidadãs brasileiras que devem ter o seu direito efetivado com políticas públicas”, afirmou ela.

A católica analisou que o cenário político é de ameaças de retirada de direitos da constituição com a crescente participação de religiosos. Rosado defendeu que é inconstitucional impor a toda sociedade a agenda moral das religiões, e que o caráter laico é condição imprescindível para o pleno exercício da cidadania. “Antes de ser uma questão moral e religiosa é de justiça social, de ética e respeito à capacidade moral das mulheres de tomarem decisões”, apontou.

Conforme ela, muitos dos debatedores contrários à legalização se dizem pautados por argumentos científicos e jurídicos, mas no fundo escondem caráter religioso. “Nós católicas baseamos a nossa defesa em horizonte cristão, por isso mesmo, retomo o princípio cristão, norteador de decisões em todos os âmbitos da vida que é, em última instância, a própria consciência. É o que fazem as mulheres que decidem abortar. O que queremos é o respeito às mulheres e a defesa incondicional às suas vidas.”

O mito da implosão demográfica
Munido de números do IBGE, José Eustáquio Diniz Alves, doutor em Demografia, tratou de se contrapor à argumentação feita por uma das debatedoras, na última audiência, de que a legalização e “consequente queda na natalidade” traria graves efeitos à previdência social e ao bônus demográfico vivido atualmente. “Temos um bônus, que vai passar, inevitavelmente, diante de qualquer cenário de fecundidade. Dizer que a baixa fecundidade vai provocar escassez de força de trabalho está longe da realidade. A previdência deve ser financiada pela produtividade, não é correto usar a dinâmica demográfica para argumentar contra a legalização”, explicou.

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Foto divulgação Senado

Ele afirmou que gravidez indesejada, sim, teria efeito perverso na população, especialmente pobre, negra e com menor nível educacional, que busca adiar a gravidez ou encerrar o tamanho da prole. O estudioso lembrou que todos os tratados internacionais, desde Cairo em 1994, falam do acesso à saúde reprodutiva. “A questão não pode ser resolvida numa gravidez forçada, mas sim com saúde pública, na perspectiva do direito reprodutivo, que no âmbito da ONU, é filho caçula dos direitos humanos”, concluiu.

Legalização é para promover aborto
Para Adelice Leite Godoy D’avila, do Movimento Pró-Vida, a defesa da legalização do aborto não é somente para tirá-lo da clandestinidade com políticas públicas, mas para promovê-lo, reformando não só a legislação como a moralidade para que as pessoas mudem de opinião. Ela afirmou que a legalização tende a aumentar o número de abortos e não tem impacto na diminuição da morte materna. “Não se trata somente de legalizar o aborto nas 12 primeiras semanas, mas de estabelecer uma agenda para aumentar e promover a prática”, explicou.

Com o mesmo discurso usado pelo padre Paulo Ricardo na audiência anterior, ela argumentou que instituições financiadoras de entidades feministas buscam promover o aborto no mundo como estratégia para diminuir o crescimento populacional nos países pobres de forma a conter efeitos sobre desenvolvidos, como os EUA. Citou como exemplo, a Católicas pelo Direito de Decidir, que seria financiada pela Fundação Ford. “Nós somos um país soberano e não devemos ser controlados por uma elite globalista. E isso não é teoria da conspiração”, terminou ela, repetindo as palavras do padre.