Nos últimos quatro anos, o Brasil liderou a aliança internacional antiaborto, retrocedendo gravemente no campo dos direitos sexuais e direitos reprodutivos através da imposição de uma agenda negacionista, antidireitos, e em desacordo com recomendações de orgãos internacionais como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS). As taxas de mortalidade no ciclo gravídico-puerperal aumentaram e as barreiras de acesso ao aborto se ampliaram, provocando o aumento da criminalização e da perseguição de mulheres, meninas e pessoas que podem gestar, que tem o direito garantido para interromper a gestação em casos de aborto legal.
Após ter sido eleito presidente, Lula criou o gabinete de transição para diagnosticar a atual situação política após os quatro anos de governo de Jair Bolsonaro. Com 100 dias de Governo Lula, quais foram os avanços no campo dos direitos das mulheres, meninas e pessoas que gestam? O primeiro desses avanços corresponde à própria estruturação dos ministérios, com a recriação do Ministério das Mulheres, nomeando como ministra Cida Gonçalves, que possui trajetória no âmbito do movimento feminista e do enfrentamento à violência contra as mulheres, e a nomeação da cientista e pesquisadora Nísia Trindade para o Ministério da Saúde. Atuando de forma interministerial, ambos os ministérios são estratégicos para a promoção e garantia de direitos.
Na cerimônia de posse1, Nísia Trindade firmou o compromisso, diante da demanda dos movimentos feministas, com a revogação das portarias e notas técnicas criadas durante o governo Bolsonaro, que ofendiam a ciência, os direitos humanos e os direitos sexuais e reprodutivos, inscrevendo a posição do Ministério da Saúde em uma agenda conservadora e negacionista da ciência. Outro aspecto importante diz respeito à formação da equipe que integra o Ministério da Saúde, que, durante o governo Bolsonaro, teve a sua frente um grupo de oposição à promoção dos direitos sexuais e reprodutivos, fazendo avançar uma agenda de retrocessos e de criminalização da prática do aborto.
A equipe do Ministério da Saúde no atual governo2 conta com o médico sanitarista Nésio Fernandes como novo Secretário de Atenção Primária à Saúde (SAPS). Em entrevista3, Fernandes posicionou-se em defesa do aborto legal no SUS, tendo participado do episódio da menina de dez anos do Espirito Santo que teve o direito à realização do aborto negado, tendo que realizar o procedimento em hospital de referência na cidade do Recife (PE) em 2020, durante a pandemia do COVID-19. Na entrevista, o secretário disse que “Precisa ter uma rede materna que faça aborto, descentralizada. Eu tive que levar uma menina de dez anos do Espírito Santo para Pernambuco. Combinei com todo mundo um silêncio, o segredo, até concluir o procedimento. Por questão de religiosidade de agentes comunitários da saúde, médicos, enfermeiros, [eles] acolhem a criança gestante como mãe. ‘Oi, mãezinha, ouve o coração [do bebê].’ Eles naturalizam a violência naquele sofrimento, impedem que aquela criança possa inclusive ser estimulada a exercer sua autonomia, a sua decisão. E não repara a vítima do ponto de vista do sofrimento psicológico”4.
Na ampliação e re-posicionamento do Brasil na política externa, em interface com as mudanças promovidas na política interna, tem-se um novo posicionamento brasileiro na audiência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos5 e na atuação global em relação aos direitos sexuais e aos direitos reprodutivos. Na audiência, realizada no mês de março, o Brasil foi representado pelo médico de família e comunidade, e diretor do Departamento de Gestão do Cuidado Integral da SAPS, Marcos Pedrosa. Ele afirmou o compromisso do governo em promover políticas dos direitos das mulheres no âmbito regional e hemisférico, com a redução da mortalidade materna, com a perspectiva de promoção da igualdade de gênero, com o acesso à informação e à educação sexual, e com o restabelecimento e promoção dos direitos sexuais e reprodutivos: “Vamos enfrentar as desigualdades, seguir as diretrizes científicas, assim como respeitar os direitos humanos das mulheres e meninas”, disse.
Em âmbito global, foi revogada a construção realizada em outubro de 2020 pelo Governo Bolsonaro junto a países como Polônia e Egito, na assinatura da Declaração do Consenso de Genebra, que afirmava a não existência de um direito internacional ao aborto legal e que limitava o conceito de família a uma perspectiva heteronormativa. Em uma atuação conjunta entre os Ministérios das Relações Exteriores, Direitos Humanos e Cidadania, Saúde e das Mulheres, a retirada do Brasil do Consenso foi pautada no novo alinhamento do Brasil “ que respeita a promoção da igualdade e da equidade de gênero em diferentes esferas, a participação política das mulheres, o combate a todas as formas de violência e discriminação, bem como os direitos sexuais e reprodutivos”. Nessa guinada da política externa, o Brasil se associa ao Compromisso de Santiago e à Declaração do Panamá, ambos com comprometimento na reivindicação pela igualdade de gênero na América Latina6.
Com relação às medidas concretas adotadas pelo Ministério da Saúde nesses primeiros 100 dias de Governo Lula, destacamos a revogação de seis portarias elaboradas sem base científica, amparo legal e em desacordo com os princípios do SUS, assinadas durante o Governo Bolsonaro7 sem discussão com representantes do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems). Dentre as portarias revogadas, destacamos a GM/MS nº 2.561, de 23 de setembro de 2020, que “dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS”. Segundo a Portaria, a equipe médica deve comunicar à polícia ou às autoridades competentes caso recebam solicitação de aborto em decorrência de violência sexual, devendo preservar possíveis evidências materiais do crime, como fragmentos do embrião ou feto.
Outra portaria revogada foi a GM/MS nº 715, de 4 de abril de 2022, que “altera a Portaria de Consolidação GM/MS nº 3, de 28 de setembro de 2017, para instituir a Rede de Atenção Materna e Infantil (RAMI)”, em substituição à Rede Cegonha, atuante desde 2011 e restituída pelo atual governo, de forma a garantir no SUS o atendimento de qualidade, seguro e humanizado para todas as mulheres antes, durante e depois do parto. Dentre as críticas direcionadas a RAMI, está a ausência de Centros de Parto Normal (CPN), oferecendo assistência especializada às gestantes de risco habitual, a não previsão da presença da Enfermagem Obstétrica e Obstetrizes entre as profissionais que atuam na rede, e a caderneta da gestante instituída e distribuída pelo SUS, que promovia práticas e diretrizes sem comprovação científica e que resultam em violência obstétrica.No campo do enfrentamento à pobreza menstrual, em março foi assinado o decreto para criação do Programa de Proteção e Promoção da Dignidade Menstrual8, assegurando a oferta de absorventes pelo SUS para a população abaixo da linha da pobreza. Como parte da atuação interministerial, o Ministério da Saúde, junto do Ministério da Igualdade Racial9 na figura de Anielle Franco, debateram a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra e o Projeto Saúde em Territórios, Favelas e Periferia, firmando compromisso no enfrentamento ao racismo como fator determinante no acesso à saúde de qualidade e igualitária.
No dia 31 de março, o Ministério da Saúde10 realizou o “Webinário alusivo ao Dia Nacional da Visibilidade Trans: saúde, respeito e inclusão social”, para debater o desenvolvimento de políticas públicas específicas para a população trans e não-binária, apontando uma série de ações que devem ser estudadas e implementadas como a “expansão da oferta de prevenção combinada para além da rede especializada em HIV; ampliação de “ambulatórios trans”; modelos diferenciados de serviços para pessoas trans jovens e adolescentes 15+; [e] Incorporação de novas tecnologias”. Outra importante iniciativa é a oferta por parte do Ministério da Saúde, através da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES)11, de capacitações gratuitas voltadas para profissionais que atuam na área da saúde da mulher, com destaque para a capacitação voltada para o atendimento de mulheres com deficiência e mobilidade reduzida.
O que observamos, portanto, nesses primeiros 100 dias de Governo Lula, é uma equipe empenhada na reparação política e social em torno de uma agenda que representou nos últimos quatro anos o profundo retrocesso na garantia de direitos de mulheres, meninas e pessoas que gestam, o que nos aponta para a necessidade de permanecermos atentas e atentes para, após restabelecido um ambiente democrático e de direitos, que possamos avançar na agenda de forma a garantir o acesso integral à saúde e a justiça reprodutiva.
É a partir dessa compreensão e a nível de articulação, que acontecerá no início de julho em Brasília a Conferência Nacional de Saúde, com o tema “Garantir Direitos e Defender o SUS, a Vida e a Democracia – Amanhã vai ser outro dia”. Em nível municipal, intermunicipal, regional, macrorregional, estadual e distrital, entre os meses de agosto de 2022 e maio de 2023 vem ocorrendo ainda as Conferências Livres Nacionais, que fazem parte dos mecanismos de participação social em saúde. É importante destacar que a Rede Feminista de Saúde – Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos (RFS) integra o Conselho Nacional de Saúde (CNS) e recomenda e apoia a participação de todas e todes integrantes nas conferências que estão programadas para serem realizadas em defesa da saúde das mulheres e dos direitos sexuais e direitos reprodutivos de todes. Destacamos a Conferencia livre estadual de 26 de abril no Rio de Janeiro e a Conferência nacional livre prevista para 28 de maio, em formato híbrido, sendo presencial no Rio de Janeiro e on line para todas as regioes do país.
Principais eixos que avançaram nesses 100 dias de Governo Lula
INSTITUCIONAL- Reestruturação Ministerial, com uma equipe comprometida com a ciência e com uma agenda de garantia de direitos sexuais e reprodutivos; compromisso com o fortalecimento da Atenção Básica e medidas para restabelecer a presença do Mais Médicos em áreas com falta de profissionai.
NORMATIVO- Revogação de portarias e normativas;
RELAÇÕES INTERNACIONAIS E DIPLOMÁTICAS- Re-alinhamento do governo no âmbito da política internacional comprometida com uma agenda de direitos;
INCLUSÃO- Capacitação e promoção de uma política inclusiva, no que diz respeito a população trans, não-binária, e mulheres com deficiência e mobilidade reduzida.
Texto com pequenas alterações/correções , realizadas por Ligia /RFS em 20/4/2023
1https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2023/janeiro/confira-o-discurso-da-ministra-da-saude-nisia-trindade-durante-a-cerimonia-de-posse
2https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2023/janeiro/equipe-indica-visao-de-compromisso-afirma-nisia-trindade-ao-anunciar-nomes-para-as-secretarias-do-ministerio-da-saude
3https://g1.globo.com/saude/noticia/2023/01/05/retomar-o-mais-medicos-com-estrangeiros-e-elevar-coberturas-vacinais-sao-prioridades-diz-novo-secretario-da-saude.ghtml
4https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2023/01/aborto-legal-e-transexualizacao-nao-podem-ser-tabus-no-sus-diz-novo-secretario.shtml
5https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2023/marco/ministerio-da-saude-representa-brasil-em-audiencia-da-comissao-interamericana-de-direitos-humanos-e-fala-sobre-direitos-reprodutivos
6https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/desligamento-do-brasil-do-consenso-de-genebra
7https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2023/janeiro/ministerio-da-saude-revoga-portarias-que-contrariam-diretrizes-do-sus-e-sem-pactuacao-com-estados-e-municipios
8https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2023/marco/ministerio-da-saude-garante-oferta-de-absorventes-pelo-sus
9https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2023/janeiro/combate-ao-racismo-ministras-debatem-reducao-de-desigualdades-no-acesso-a-saude
10https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2023/janeiro/webinario-alusivo-ao-dia-nacional-da-visibilidade-trans-debateu-acoes-de-combate-a-discriminacao-e-ampliacao-do-acesso-a-saude
11https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2023/marco/ministerio-da-saude-oferta-capacitacoes-gratuitas-para-profissionais-que-atuam-na-area-da-saude-da-mulher